Tour de La Patagonia 2009
Sobre como um ingênuo “atleta de fim de semana” associou-se a um atleta habituado para participarem de uma prova de alto nível internacional, sendo a primeira prova juntos e primeira prova de MTB na vida.
A origem do plano
Há muitos, muitos anos mesmo, o Mauricio (51, o ingênuo) viu uma reportagem sobre uma viagem de ciclistas brasileiros à Patagônia e ficou “infectado” de forma permanente pelo desejo de ter a mesma experiência, principalmente pela beleza indescritível das fotos da região. Quando em meados de 2008 o Marcus (30) recebeu um mail anunciando a primeira edição desse Tour de La Patagonia e divulgou entre os amigos da HP, a oportunidade de realizar aquele antigo sonho foi irresistível. Durante algum tempo exploramos o site da prova (http://www.tourdelapatagonia.com), examinando os detalhes técnicos, sonhando e nos deliciando com as bem selecionadas fotos de divulgação. Não deu outra, nos inscrevemos logo em seguida e começamos os preparativos para a empreitada.
A região
San Martin de Los Andes é uma espécie de “San Tuário” do Ecoturismo e do MTB. Até as bicicletas infantis, modelo clássico com rodas de 14”, são Gary Fisher. Na rua circulam incontáveis Specialized, Trek, Scott, Gary Fisher, Merida, etc. Várias lojas especializadas em MTB e equipamento de ski.
A cidade é toda um cartão postal. Calçadas cobertas de roseiras intocadas, de todas as cores. A arquitetura tipicamente européia. Voltada ao turismo, transcende paz e tranquilidade. Isso pode ser constatado até pelos cachorros de rua. São pacíficos e tranquilos, sem medo algum por não sofrerem maus tratos, bem alimentados. Lugar muito civilizado e bonito. O trânsito é lento e todos se respeitam.
A luz é esmaecida, com um tom de alvorecer ou crepúsculo todo o tempo, por causa da maior latitude em relação ao que estamos acostumados. Aquela região é denominada “Região dos Lagos”, pois são inúmeros, de degelo em grande parte, a água de um azul deslumbrante, gélida. A vegetação é abundante, muito rica e variada. Nossos planos são voltar lá o mais breve possível.
O único ponto negativo para nós brasileiros são os preços, pois nosso real recentemente desvalorizado em relação ao dólar, torna alguns gastos básicos bem salgados.
A prova
A divulgação da prova já havia fornecido vários detalhes: a prova teria um percurso total de cerda de 220km, dividida em três dias/etapas. Haveriam dois acampamentos entre cada etapa, um em Laguna Verde e outro em Nonthue (Lago Nácar). Largada na sexta-feira (20 de fevereiro) com retorno domingo (22).
Chegamos a San Martin na quarta-feira dia 18, após um pernoite em Buenos Aires (albergue Che Lagarto). Ao chegar no aeroporto Chapelco (San Martin), a má notícia: algumas bicicletas haviam seguido rumo desonhecido, entre elas a do Maurício. Pavor! Será que chega a tempo de montar e testar? Onde anda minha bicicleta? Terá resistido bem aos maus tratos como “bagagem”?
A quinta-feira (19) foi o dia de correr atrás da bike perdida (muuiitttoo stress) e fazer as Creditaciones (agora sabemos que tem a ver com cartão de crédito e não com credenciamento, hahaha). Dia de muita correria, muitos preparativos. Espera longa e desnecessária numa fila para um processo burocrático de “creditaciones” (poderia ser muito mais simples). Montar, revisar e testar as bikes. Juntar as coisas que deveríamos colocar no container da dupla (numeral 108), que a organização da prova se encarregaria de fazer acompanhar.
O clima da região nos surpreendeu: muda rapidamente e a temperatura varia muito mais do que estamos acostumados. Nessa quinta-feira estávamos de T-shirts enquanto muitas pessoas vestiam até abrigos leves para frio. Isso nos alertou para comprarmos alguma roupa mais quente para levar junto com outros mantimentos. Foi o que nos salvou (ver adiante).
Como mantimentos, novamente nossa inexperiência e “clima de festa” (e não de competição) fez com que adicionássemos duas garrafas de bom vinho ao container. Ainda bem.
À noite, a “cena de carboidratos” e o briefing inicial, orientando os competidores sobre o que os aguardava, além de alertar sobre os perigos em geral, incluindo os trechos onde andaríamos em estradas com trânsito normal. Excelente oportunidade de confraternização, ver e entrar em contato com aquele monte de gente que tem em comum a paixão pelo MTB e por aventura. Após essa janta, fomos tomar mais umas cervejas para reduzir a excitação e permitir que dormíssemos. Somos “bons copos”, conscientes de nossas limitações como “competidores” e dispostos a aproveitar com prazer a experiência.
É sexta-feira (20), finalmente o grande dia. Levantar antes do sol (prática comum durante toda a semana), fazer desjejum de carbohidratos, pedalar até o ponto de largada (umas 5 quadras apenas). Novo briefing rápido sobre o trecho de ligação/deslocamento, recomendações pelo trânsito, e a largada "simbólica".
Nos foi dito que o primeiro trecho (cerca de 15km) seria de “enlace” (ligação), não cronometrado, por segurança pois era em estrada com trânsito. Como levávamos na perna o chip de cronometragem, imaginamos que teria um ponto de tomada de tempo após esse trecho. Ledo engano. Os competidores mais experientes sabiam disso e assumiram um ritmo forte desde essa “largada simbólica”, sem perda de tempo. Nós, sem grandes pretensões de competir e iludidos por essa idéia de “enlace”, fomos pedalando como num passeio, parando para fotos. Ou seja, fomos “de graça” acrescentando tempo ao nosso percurso, já de largada empurrando nossa classificação lá pro fim.
No dia anterior, logo após a chegada ao aeroporto, fomos perguntando sobre os grandes condores. Nos disseram que bem perto (Junin de Los Andes, uns 50km) há bastante ninhos e se avistam os pássaros até parados perto da estrada. Isso tudo era prenúncio pra agonia do Maurício, que parece estar na idade do Condor. Com dor, aqui, com dor ali...
A dor nas costas começou a atrapalhar logo após uns 30km de subida, bem forte (tanto a dor quanto as subidas). Assim, mais fotos, passar gel de Diclofenaco nas costas, mais fotos, mais gel... As fotos agora já são desculpa para pequenos descansos e passar mais gel nas costas. Cada vez mais tempo adicionado à nossa cronometragem.
Essa primeira etapa foi o primeiro grande impacto com a paisagem de outro mundo. Não tem como ignorar essa beleza toda e passar correndo por ali. Impossível. Deve ser difícil ficar alheio à essa exuberância mesmo tendo passado por ali várias vezes. Realmente um dos lugares mais bonitos do planeta. As lembranças daquela antiga revista vieram e a realidade faz jus à toda a expectativa. Natureza linda, linda como só neste nosso planeta tão pouco valorizado pode ser. Campanha ambientalista? Levem as pessoas a conhecer a Patagônia e digam que elas podem acabar com aquilo. Garanto que essa seria uma das lições ambientais mais fortes.
Falta muito pra essa tal de Laguna Verde? Essa primeira etapa são “apenas” uns 60km, a maioria por estradinhas trafegáveis, com muitas pedras, mas trafegáveis. O que mata é o relevo. Subimos de 650m para 1150m por longos trechos (ver gráfico de altimetria).
Agora o impacto do acampamento: de quem são esses motor-home e tendas? Ao chegarmos no acampamento, nos defrontamos com a realidade do profissionalismo de muitas equipes: infraestrutura de apoio completa, desde oficinas móveis até alimentação exclusiva.
Ao parar no acampameno, o Maurício sentiu os primeiros sinais de dor no tendão de Aquiles. Nos dias seguintes, ambos os pés iriam doer e inchar até ficar quase insuportável pedalar, embora isso fosse ainda mais fácil do que caminhar, pois as sapatilhas “clipless” permitem pedalar quase que apenas “puxando” os pedais, aliviando assim a tensão nos tendões.
Chegamos cedo (15h mais ou menos) nesse acampamento, permitindo desfrutar de toda a beleza do lugar. O pôr do sol em Laguna Verde abriu a primeira garrafa de vinho (e valeu cada gota!!!).
Depois do pôr do sol, a "cena". Barriga cheia de pasta com pollo (eles não vão mudar o cardápio?), o cansaço e o vinho nos fizeram dormir cedo.
Ainda em Porto Alegre, o Marcus havia perguntado sobre a necessidade de abrigos para o frio. Após pesquisar os canais de tempo pela internet, o Maurício disse: "Marcus, não precisa levar abrigo pra frio: a previsão do tempo diz que a temperatura vai oscilar em torno de 20 graus. Além disso, os sacos de dormir são bons, não tem como sentir frio!!!".
Bem, essa primeira noite no acampamento trouxe um descrédito geral, tanto nos canais de tempo para essas regiões quanto do Marcus com relação à opinião do Maurício. Quase morremos de frio, literalmente. Nossa sorte foi termos comprado os moletons como parte dos mantimentos (e o vinho). E os sacos de dormir, apesar da boa qualidade, não conseguiram isolar totalmente o frio intenso, até porque não tínhamos aqueles colchonetes isolantes entre nós e o chão. Êta noite difícil e comprida, sô!
Acordamos no sábado (21) ainda em completa escuridão (já um hábito agora). Depois de muita força de vontade, conseguimos sair de dentro dos sacos de dormir. Onde estamos?!?! OVNIs nos transportaram direto para a Antártida?!?! O frio extremo (congelante mesmo) trouxe uma paisagem ao mesmo tempo fantasmagórica e linda: o acampamento e o lago estavam imersos numa bruma densa, a temperatura em torno de zero graus.
Nova largada, agora num areião preto e solto, sob a densa neblina. “Ei, preciso das mãos para trocar de marcha!!!” Passamos a primeira hora contando os dedos, pois já não os sentíamos mais. As 10:30 o sol vem nos salvar. O OVNI nos leva de volta ao Saara. Mais paisagens deslumbrantes.
Pedala, passa gel Diclofenaco, pedala mais, mais Diclofenaco. Agora as fotos são uma desculpa para o descanso.
Depois de umas quatro horas pedalando, chegamos ao Chile. Mais um pouco e uma pausa para o "almoço", de 1/2 hora. Gente alegre, recepcionando com alegria e entusiasmo, ainda que fazendo confusão com câmbio e atrapalhados com um movimento ao qual não estão acostumados.
Nova largada, ainda rumo ao sul. Por já conhecer o mapa, tínhamos noção de onde estávamos e já ansiávamos pela “curva à esquerda” que nos levaria em direção ao leste e ao retorno à Argentina. Essa região do Chile (Panguipulli e arredores) é também denominada de “santuário ecológico”. Lagos e vulcões. Não morram antes de irem lá conhecer, sério.
Finalmente, nova “curva” para esquerda (norte) nos levando em direção à Argentina e ao descanso. Essa etapa foi a mais longa e mais dura, principalmente pelo terreno acidentado que exige muito. O que compensa é a beleza do lugar. Se não fosse isso seria masoquismo puro.
Depois de mais algumas horas pedalando, chegamos finalmente à beira do lago Pirehueico, onde a travessia seria por balsa. Perdemos a balsa por 15 minutos. Precisaríamos esperar por umas 3 horas pela nova balsa. O que fazer nessa espera? Cerveza, lógico.
Depois da travessia na balsa, novamente com imagens deslumbrantes, chegamos a Puerto Pirehueico. Descanso? Ainda não! Mais uns 20km até o acampamento, desta vez não cronometrado mesmo. Fomos nos arrastando. Chegamos ao segundo acampamento quase noite, amortecidos. Durante o briefing à noite, a boa notícia: a largada no domingo foi adiada para as 10h, pois o sábado havia sido muito duro pra todo mundo. Nova "cena", novamente pasta com pollo. A segunda e última garrafa de vinho. Capotar.
O domingo (22) veio como um bálsamo. Já estávamos bem cansados. Somente o fato de ser a última etapa e mais "curta" nos faz prosseguir. Pela altimetria divulgada, seria a mais difícil, a despeito de serem menos de 60km. Subir de 800m para 1600m em trilha fechada, com muitos troncos. Fácil, fácil. Com tendinite calcânea nos dois pés então...
E foi bem difícil mesmo. Trilha muito íngreme, muito técnica, curvas muito fechadas em ascensão, piso muito escorregadio e cheio de obstáculos, troncos principalmente. Penoso ao extremo, principalmente por ser a última etapa depois de dois dias que já haviam esgotado as energias.
Tudo que sobe desce, mas agora vamos variar o terreno. Após atingir o topo de 1600m, a descida é também muito técnica, exigindo muito controle de freios e guidão: íngreme em valões de um areião grosso escuro e solto por cima do terreno mais duro. Verdadeiro teste de sangue frio, habilidade, resistência e coragem.
Um córrego gelado foi o analgésico natural para a tendinite do Maurício, que ficou parado ali por uns 15 minutos, com os pés imersos na água fria para aliviar a dor da inflamação.
Sobe ainda, agora na estrada. Todo mundo diz: "força, faltam só 4km". Há horas e pelo menos a uns 20km ouvimos a mesma coisa. Último trecho: ladeira abaixo. Nossa própria britadeira kamikaze, pedras e mais pedras na estrada (descemos a cerca de 60km/h – uma queda aí teria efeitos drásticos).
Essa estrada pedregosa finalmene cobrou seu tributo: o Maurício furou o pneu traseiro. E o Marcus, que era o único que havia levado bomba para encher o pneu, já havia sumido no horizonte há muito, aproveitando a descida no máximo de velocidade. Depois de empurrar a bicicleta por um bom trecho, finalmente o Maurício encontrou outra equipe cujo destino havia sido mais cruel. Um deles caiu feio e aguardava a ambulância. A bomba emprestada permitiu a troca da cãmara e prosseguir com o trecho final.
Finalmente, a tal pista de motocross que marcava o último posto de cronometragem. Agora é pedalar sem pressa pelas ruas de San Martin até o ponto de chegada, à beira do lago Lácar (costanera). We did it!!!
Agradecimentos
Tivemos muitos amigos a nos incentivar nessa empreitada. A empresa que trabalhamos, Hewlett-Packard, nos forneceu a vestimenta. Os colegas de trabalho e amigos deram muita força também. E sempre fomos bem atendidos pelas lojas Cia. Das Bikes, Rodociclo e Danda Bikes. O Maurício agradece muito à Laura, namorada, amiga e amante que foi o farol a lhe dar forças para seguir adiante, a despeito da dor. O Marcus agradece ao seu técnico, Marcelo Diniz, por ter insistido e colocado treinos específicos de bike em sua planilha de treinos semanais.
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